Já é tarde, os sinos da catedral soam, meia noite em ponto desligo a televisão indo em direção ao meu quarto. Passos lentos olhando cada detalhe do piso de madeira, velho, riscado, todo desbotado pelo tempo.
“O caminho se torna longo, o tempo desaparece, os segundos não existem, o presente se desfaz dando espaço para as lembranças, de um o passado de superações, de medos não enfrentados, de oportunidades perdidas, de casos e acasos solucionados.”
A parede branca descascada, no canto, próximo ao batente, não esta pior que a frente da casa, precisa de uma restauração total. Não é por falta de descuido ou de vontade, apenas não temos dinheiro suficiente para nos dar ao luxo em satisfazermos nossos olhos ou das visitas que fingem não reparar, mas mal conseguem tirar os olhos dos defeitos, mal sabem a luta e obstáculos que enfrentamos. Por muitas vezes sinto vergonha, um certo desânimo pela minha condição, mas não posso desistir, ainda mais agora com uma filhinha linda e uma esposa pela qual sempre pedi em minhas orações... Ele me ouviu!
Ela está toda esparramada na cama, Yasmim dormiu faz poucos minutos. Ainda sinto a mesma paixão, um amor maior do que o início do nosso namoro, maior que o daquele dia no banco da praça, onde avistamos o dançar da borboleta negra de pintas brancas em cada ponta das asas, sentimento tão intenso que não da para calcular seu peso ou tamanho, simplesmente senti-lo.
O forro da casa é de madeira, em dia de chuva ela se parece com a casa do filme “Sinais”, com Mel Gibson no personagem principal, onde sua filha espalha vários copos com água pela casa para se proteger dos alienígenas. No nosso caso são baldes, bacias, canecas para conter as goteiras que nascem da madeira embolorada. Soa cômica a situação, mas me dá uma dor no coração por temer pela saúde delas. Por mais gotejos existentes, nosso quarto se salva com apenas um escorrimento na parede já demarcado com um tom marrom, por muitas outras vezes ocorridos!
“Sorrir para os nossos problemas e dizer que jamais desistiremos, fácil na teoria, já na prática... Inesquecível atitude!
Quem acredita em sua própria vitória sempre irá vencer, quem acredita na sua capacidade sempre irá alcançar, há aqueles que nascem para comandar e liderar, há também aqueles que se dedicam somente ao amor e a sua natureza, ao bem estar do seu próximo... Não importa qual seja a sua personalidade ou suas escolhas, o importante é procurar a alegria dentro de si e transmiti-la a quem necessita.”
Um suspiro calmo e silencioso, ela abre os olhos toda sonolenta junto de um sorriso tímido espremendo os olhos com as mãos.
“Deita comigo amor!”
Debruçada sobre meu peito caindo no sono novamente, sinto seus pulmões encherem de ar, sinto minha calma retornar.
Os sons de pingados começam aumentar sua intensidade, a chuva esta forte e intimidadora, fazendo qualquer morador de rua correr atrás de um refugio... É esse pensamento que me vem à cabeça, imaginar eu aqui, no conforte de minha casa, onde outros mal têm a opção de se manter aquecido e seco.
“O mundo parece ser injusto a nossos olhos, as nossas condições, insatisfeitos com o que temos reclamamos por bens materiais não obtidos, a quem deseja poder andar e mal consegue falar, a quem deseja cantar e mal pode ouvir, e mesmo assim com todas essas dificuldades sabem aproveitar o bom da vida... Amar!”
Foi só falar que o quarto estava salvo, que uma gota conseguiu mirar o buraco do meu nariz. Acender luz da casa... Nem pensar! Imagina a fiação da casa pegando fogo. A base de velas, todas às vezes são assim! É pra rir mesmo, pois é ela riu! Riu tão alto e tão demorado, que a Yasmim acordou, ai quem riu foi eu.
Empurra ali, empurra aqui, cômoda pra lá, cama pra cá e Yasmim no nosso meio. Era uma chuva tão intensa, que eu tive que por o berço dela em cima de um sofazinho que há em nosso quarto, usado pela minha esposa para fazer Yasmim dormir. Estava ruim, mas estava ótimo em ver o quanto ela é uma mãe dedicada, o quanto é uma esposa esforçada e feliz, principalmente quando me diz que me ama. Não consigo imaginar nada melhor que os segundos que antecedem o beijo dela.
São quase duas horas da manhã, ambas em um sono profundo e eu aqui te escrevendo, no silêncio, no vazio negro, uma única luz vinda da vela no pires lascado nas beiradas sobre o criado-mudo. Sinto meus olhos pesados, quase me fazendo inclinar para frente, quase me vencendo, mas antes me lembro das suas condições, mais um momento triste pelo qual está vivendo... Sobrevivendo! Você tem muitos motivos para desanimar e desistir... Muitos motivos, porém poucos argumentos. Antes de qualquer coisa, você deve se perdoar, e aceitar que o passado agora importância alguma se tem. Sua vida agora é essa, a realidade é dura e madura, sua doença, seu fardo... Talvez seja essa sua salvação, sua reconciliação, o seu próprio perdão que procura e não encontra. Você pode vencer de muitas formas, mesmo que você venha falecer amanhã, hoje, agora... Nem quero pensar nisso! Mas sua recuperação não depende do resultado final, mas sim o que se pode fazer agora, das vidas que você pode salvar... Você deve essa ajuda a si próprio. Uma coisa é certa, eu não tenho a sua riqueza, muito menos sua frieza de tempos atrás a ponto de ignora-lo e deixa-lo sentir do próprio veneno.
“O escorpião é tão defensivo e mortífero, que sua melhor defesa é a causa de sua própria morte.”
A chuva acalmou, os pingos ainda se fazem presente, eles na sala parece colidirem ao pé do meu ouvido de tão agudos e irritantes. E pra espantar de vez o pouco sono que me tinha, a sede se torna incontrolável. Pés descalço no chão vermelho, úmido e sujo. O assoalho da sala está mais parecido com um deck à beira-mar, todo molhado pelos respingos!
“A porta da geladeira deixa escapar o ar frio, água gelada em uma garrafa pet de dois litros é despejada em uma caneca de alumínio, e bem lá embaixo, no fundo, atrás de um pote de manteiga está uma salada de pepino com cenoura, enfim, devorada, em coisa de segundos.”
Quase quatro horas da manhã. Tenho que levantar as seis pra ir à feira, comprar as verduras mais em conta, desde que o tomate vale ouro, sigo o exemplo de minha mãe. Amo essas pequenas coisas em minha vida, são como aventuras em terras não habitadas, esses simples detalhes me fazem feliz. Acredito que você também possa viver com isso.
“Se você construir um império, lembre-se que ele só existirá se você souber cuidar do seu povo, porque é esse povo que o torna grandioso e em constante evolução.”
PS: Não tenho muitas palavras para te consolar, mas tenho meu carinho e minhas mãos para te ajudar no que estiver a minha altura, alias, amigos servem para isso, certo? Ei, precisa conhecer minha filha, alias você é o padrinho dela! Melhoras!